Diz-me o que lês… dir-te-ei do que sofres
Páginas anti-inflamatórias, parágrafos analgésicos e histórias que são verdadeiras doses de vitaminas. A biblioterapia, dizem, pode curar estados de alma através dos benefícios da leitura e não tem contraindicações. Falámos com Ella Berthoud, co-autora de Remédios Literários, para perceber afinal do que trata esta terapia dos tempos da Grécia Antiga
Para Ella Berthoud, a biblioterapia “é a arte de prescrever a ficção para as doenças da vida”. Dito assim pode parecer simples, mas até receitar um livro para tratar um qualquer estado de alma, a biblioterapeuta e pintora inglesa precisa de entrar no nosso cérebro, tal como o leitor faz com o autor e as personagens de um livro. Ella Berthoud precisa saber os hábitos de leitura das pessoas, os amores e desgostos, as mudanças que estão a acontecer na vida, desde bebés a caminho, mudanças de emprego ou de casa, novo relacionamento ou uma crise existencial.
No livro Remédios Literários, escrito a meias, em 2014, com Susan Elderkin, as autoras recomendam livros de A a Z, para problemas desde “abandono” a uma “zanga com o melhor amigo”. São mais de 750 referências para tratar uma série de problemas: ressonar, baixar a tensão arterial, combater pesadelos, superar um divórcio. Em 2016, publicaram The Story Cure, dirigido a pais em apuros, frisando que os bons livros para a infância servem tanto para adultos como para crianças.
Ella e Susan conheceram-se quando ambas eram estudantes de literatura inglesa na Universidade de Cambridge. Sempre que partilhavam um problema, recomendavam livros uma à outra para superar a situação. Para as autoras inglesas que, no ano passado, estiveram em Portugal, no Festival Literário Internacional de Óbidos, onde começaram as leituras massajadas, ler o livro certo no momento certo pode mudar a vida das pessoas.
A biblioterapia afinal é muito antiga, nasceu mesmo no tempo de Platão?
Há evidências de que na Grécia Antiga usavam a biblioterapia como uma forma de lidar com as doenças. Nessa altura, as bibliotecas e os teatros eram construídos perto dos hospitais. Os gregos perceberam a necessidade da catarse como uma forma de purgar fortes emoções que poderiam ser prejudiciais. Se experimentassem emoções fortes ao ver uma peça de teatro ou ao ler um livro, não teriam de passar por elas na vida real, mas seriam curados experimentando-as de forma ficcional.
Existem vários tipos de biblioterapeutas ou apenas um?
Nós [com Susan Elderkin] praticamos uma biblioterapia muito particular, aquela que usa a ficção como cura das doenças da vida. Há alguns biblioterapeutas que usam muito mais obras de não-ficção nas suas prescrições, escolhem livros de auto-ajuda e literatura não-ficcional. Nós somos as únicas biblioterapeutas que, quase em exclusivo, só usamos romances nas nossas curas. Também fizemos o nosso próprio questionário para descobrir o que torna o cliente em determinado tipo de leitor. Temos vindo a aperfeiçoar o questionário durante muitos anos, para obter as perguntas certas. Os clientes gostam, realmente, de preencher o questionário, como um preliminar para a nossa reunião.
Como se distingue a biblioterapia dos livros de auto-ajuda?
Quando conhecemos os clientes, descobrimos muito sobre o tipo de pessoa que são, bem como o tipo de leitor. Percebemos que livros amam e odeiam e se preferem mais literatura baseada em história ou em outra linguagem. Por isso, os livros que recomendamos para ler são uma prescrição à medida da leitura perfeita para cada um deles. Os livros de auto-ajuda são escritos para que todos possam ler o mesmo, e são muito menos subtis do que a ficção. Quando se lê ficção entra-se na cabeça do autor e das personagens e isso transforma o seu mundo interior de uma maneira muito diferente da dos livros de auto-ajuda. Com a auto-ajuda, o autor fala para a mente consciente do leitor; com a ficção, o escritor vai direto para o inconsciente. Isso torna o efeito da biblioterapia muito mais duradouro e profundo.
Há um género literário certo para cada tipo de doença ou estado de alma?
Não é tanto o género certo, mas uma coleção de obras. Por exemplo, para a depressão temos um conjunto de romances que revelam os sentimentos da pessoa deprimida, mostrando-lhes que não estão sozinhos, enquanto outros romances vão ajudar a sentir-se mais positivo. Para o luto, temos romances que levam o leitor pela mão e mostram-lhes como sobreviver a esse momento trágico na sua vida. Para cada problema temos uma obra única, mas isso também depende do leitor e do tipo de livros que gosta ler.
Recomendam os grandes clássicos da literatura mundial?
Preferimos a ficção à não ficção, mas também escolhemos memórias, biografias e poesia. Tendemos a não recomendar demasiados best-sellers globais, por acharmos que os leitores os vão descobrir por si próprios. Estamos aqui para surpreender o leitor com livros com os quais nunca se cruzariam. É por isso que não podemos parar de ler!
O cérebro humano reage de acordo com o que lê? Como é que funciona?
Estudos científicos já demonstraram que o cérebro responde ao que lê disparando as mesmas vias neuronais quer na leitura, quer na própria atividade. Ao ler sobre ir fazer uma corrida de dez quilómetros o seu cérebro cria o mesmo tipo de efeito como se realmente tivesse corrido. Naturalmente, sem trabalhar os músculos.
O processamento da leitura no cérebro é muito complexo, mas assim que uma pessoa aprende a ler, o cérebro transforma as letras em imagens, emoções, cores e sensações com uma agilidade notável. É um processo que pode demorar algum tempo, eventualmente, e o leitor nem se apercebe que a linguagem escrita passa a imagens e sentimentos. Claro, que nem toda a gente lê da mesma forma – alguns leitores são muito mais visuais, outros mais auditivos, e na verdade conseguem ‘ouvir’ as palavras dentro da sua cabeça. Alguns preferem novelas gráficas ou um áudio-livro. A leitura não é de modo algum a mesma para todos.
É verdade que os hospitais, em Londres, já usam esta terapia?
Em Cirurgia Geral, os médicos podem prescrever livros, uma vez que existe uma lista de obras para ‘levantar o ânimo’, em condições específicas e menos graves, como por exemplo, uma depressão leve ou como adjuvante da medicina tradicional. A biblioterapia não é usada em hospitais, exceto como tratamento paliativo. Existe uma organização, chamada The Reader Organisation, que anda pelos hospícios, hospitais e lares de idosos a ler às pessoas. Esta é uma maneira muito prática de praticar biblioterapia.